sábado, 3 de abril de 2010

O indio na estante

Sexta feira, enquanto passava apressada pelo calçadão da rua Felipe Schmidt, em meio a multidão frenética que ansiava pelo final de semana, deparei-me com um velho índio, fumando cachimbo, sentado na calçada. O índio parecia ignorar a agitação da cidade, sentado no passeio público sobre uma manta colorida, na qual expusera alguns pequenos objetos artesanais ao lado de uma velha caixa de sapatos com alguns trocados dentro.


Dificilmente tal personagem despertaria minha atenção, mas naquele dia sua presença tocou-me de maneira diferente. Eu estava envolvida pela leitura de algumas obras e discussões que fazíamos no curso de mestrado. Havia recentemente terminado a leitura de América Profunda, do argentino Rodolfo Kush e no momento estava lendo a obra de Richard Morse, o Espelho de Próspero, que trata das raízes filosóficas que estão na base da formação de uma América ibérica. Talvez tanta leitura e discussão sobre nossas origens culturais e filosóficas tenha feito com que eu enfim compreendesse a importância do contexto no qual estamos inseridos.

Mas voltemos ao índio. Causou-me uma sensação perturbadora perceber que estava parada a observá-lo. O olhar distante e frio do índio me desafiava. Era como se para ele estivessem ali, novamente frente a frente, colonizador e colonizado e que eu, representava a destruição de seus antepassados, de sua terra, de sua cultura. O que ele não entendia é que eu, naquele momento, também me sentia um ser sem identidade definida, sem raízes culturais sólidas, produto da mesmo choque destrutivo que ele sofrera.

Aproximei-me do velho índio e apontei um pequeno objeto de cerâmica decorada. Ele fez um sinal com as mão indicando que a peça custava dez reais. Entreguei o dinheiro e levei para casa minha aquisição, sem nada dizer.

Desde então todo vez que reflito sobre os malditos, os vencidos, os excluídos da história, lembro daquele souvenir na estante da sala, o qual contemplo como quem mira a própria imagem no espelho.

domingo, 28 de março de 2010

América profunda, de Rodolfo Kush

Pintura cusquenha

1. Uma breve síntese


América Profunda consiste em uma obra que mistura antropologia e filosofia fenomenológica. Seu enfoque trata, sobretudo, do encontro com o outro (o indígena pré-colombiano em confronto com o colonizador) em busca de um substrato comum na formação da identidade da população da América Latina.
Os estudos antropológicos de Kusch, nesta obra, centram-se no caráter religioso do indígena e do mestiço, inseridos em uma cultura que não separa o homem de sua referência cósmica, não separa cada homem dos outros homens, nem os homens dos deuses, em oposição a uma cultura ocidental urbana, desvinculada do solo, do sagrado.
Em termos metodológicos, Kusch elege a fenomenologia da cultura para a realização de seu estudo, o que significa em primeira instância uma aproximação empática com a linguagem, os ritos e as manifestações sociais dos povos andinos. Traça assim, as bases de uma dialética sul americana que se sustenta sobre o confronto de opostos.
O livro mostra-nos a forte presença da alma americana, através de uma investigação da visão de mundo andina, onde o autor desenvolve uma relação entre o ser (ou ser alguém) próprio da cultura ocidental e o estar, próprio dos indígenas, como raízes da mentalidade mestiça. Merece destaque, ainda, a relação entre o ambiente natural - no qual o granizo e a chuva, la ira de Dios, representam o temor – e o ambiente artificial – constituído no ambiente cidadão, onde reina la ira del hombre, representado pela ânsia de ser alguém.
Além disso, sob um olhar intuitivo e poético formula metáforas e produz uma forte simbologia em busca de um ser cultural americano. Para isso, utiliza-se de uma particularidade odorífera da América Latina, para referir-se a um povo que permanece a margem do progresso e investiga as particularidades da religião e mundo simbólico do homem pré-colombiano, que sujam a população americana.
Esta essência, que o autor define como fedor, em uma atitude de provocação aos que, de forma preconceituosa, vêem as raízes latino-americanas como algo ruim, opõe-se a uma pulcritude fictícia do homem urbano.

2. Algumas considerações sobre a obra

Em linhas gerais, América Profunda trata da invenção de um mundo onde o outro pode ser descartado se não se encaixar na concepção de progresso, de limpeza, de beleza, de ordem e de pureza. E por estender tais conceitos dos objetos aos sujeitos, às etnias, às sexualidades, inúmeros episódios de discriminação, massacres e verdadeiros genocídios foram forjados pelas sociedades ao longo dos tempos.
Mary Douglas, na obra Pureza e Perigo afirma que a sujeira é essencialmente desordem, portanto, é ofensiva a ordem, e existe aos olhos de quem a vê. Eliminá-la não é um esforço negativo, mas positivo, uma vez que reorganizamos o ambiente ao fazê-lo. O problema é que do ambiente, muitas vezes, passamos a reorganizar a sociedade, estendendo os conceitos de puro/impuro a pessoas e grupos sociais.
A desordem estraga o padrão. Mas, assim como estraga o padrão, ela fornece materiais para esse mesmo padrão, fornece materiais para a ordem. Cada cultura impõe sua própria noção de sujeira e de contaminação, e assim estabelece sua noção de ordem, a partir de então, a ‘sujeira’ deve ser eliminada. Neste sentido, é impossível não lembrarmos do extermínio perpetrado pelos espanhóis contra os nativos americanos ou do extermínio de judeus realizado pelos nazistas durante a segunda guerra mundial.
Pureza, sujeira, higiene, estão então associados à idéia que temos de ordem. E é esta ordem que fornece estabilidade em uma sociedade pensada em termos de projeto e progresso. No entanto, quando trancafiamos os loucos em manicômios, quando incineramos milhares de pessoas, quando exterminamos o diferente, quando consideramos o outro como sujeira e tratamos de organizar o ambiente, eliminando a presença de pessoas ou grupos indesejados, estamos assistindo uma tentativa de homogeneização e purificação da sociedade, que incluiu, na radicalização desses preceitos, a eliminação genocida do diferente, que não se encaixa nesse ordenamento social.
Assim, podemos compreender a metáfora de Kusch em América Profunda: a essência cultural do mestiço e do nativo sul americano é para o colonizador sujeira, fedor e deve ser eliminada para a constituição de um povo homogêneo e culturalmente a altura do colonizador europeu. Superar esta premissa é o grande desafio para o qual o autor nos convida.