quinta-feira, 28 de junho de 2012

AÇÕES AFIRMATIVAS : Breves considerações acerca da inexistência de reserva de vagas para pessoas com deficiência na Universidade Federal de Santa Catarina

1. Introdução O presente trabalho busca abordar um assunto polêmico: a reserva de vagas nas universidades públicas para afro-descendentes, egressos de escola pública e indígenas. Objetiva-se, neste trabalho, focalizar sujeitos que ainda não são visíveis neste processo de reserva de vagas: as pessoas com deficiência. Para tanto, o trabalho partiu da realização de uma entrevista com um estudante com deficiência, que cursa o ensino superior em uma universidade privada com bolsa do ProUni (Programa Universidade para Todos do Governo Federal). A partir da percepção do sujeito entrevistado sobre a situação pretende-se situar a invisibilidade dos portadores de necessidades especiais no atual sistema de cotas implementado pela Universidade Federal de Santa Catarina. 2. Caracterização das ações afirmativas As ações afirmativas, de um modo geral, buscam mitigar a desigualdade social existente no Brasil, atacando-a a partir do sistema educacional, que tradicionalmente, por diversos mecanismos, sempre reservou aos negros e pobres em geral uma educação de qualidade inferior. Assim, consistem em políticas públicas que tentam concretizar a igualdade substancial ou material. Segundo Gomes, as ações afirmativas [...] consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional, de compleição física e situação socioeconômica ( adição nossa). Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade de observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas apenas instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção a posteriori, as ações afirmativas visam evitar que a discriminação ocorra. Carmen Lúcia Antunes Rocha classifica as ações afirmativas como a mais avançada tentativa de concretização do princípio jurídico da igualdade e afirma que a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias . Nesse contexto de redução das desigualdades, foi lançado em 1996 o Programa Nacional dos Direitos Humanos, no qual estão previstas ações afirmativas com o objetivo de promover o acesso aos cursos de graduação e tecnólogos de ponta, como também a elaboração de políticas públicas compensatórias para a comunidade negra. Desta forma, algumas medidas passaram a ser criadas e mais tarde implementadas objetivando a inclusão de grupos étnicos, como negros e indígenas no ensino superior, bem como a ampliação das chances dos estudantes egressos de escolas públicas. Tendo como premissa a necessidade de inclusão destes sujeitos, quase dez anos mais tarde a Universidade Federal de Santa Catarina deu início ao seu sistema de reserva de vagas. 3. Pessoas com deficiência e ações afirmativas Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia) e da OMS (Organização Mundial de Saúde) existem atualmente no Brasil cerca de 24,6 milhões de pessoas que possuem algum tipo de deficiência. Este número representa aproximadamente 14,5% do total da população brasileira. Estes dados preocupantes justificam a criação de um conjunto de políticas públicas sob a forma de ações concretas visando uma eficaz tutela dos direitos de uma parcela da população mais fragilizada que são as pessoas com deficiência. A Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência de 2007, elaborada depois de quatro anos de intensas negociações (2002 a 2006) possui 40 artigos temáticos que enunciam os direitos das pessoas com deficiência e dez artigos administrativos. Foi assinada em 30 de março de 2007, ratificada pelo Brasil em 1º de agosto de 2008 e aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Trata-se do primeiro tratado internacional de Direitos Humanos aprovado com a observância do artigo 5º, § 3º, da Constituição da República, ou seja, os direitos ali expressos possuem o status de emenda constitucional. Nos termos da Convenção da ONU de 2007 são consideradas pessoas com deficiência "aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas". Esta convenção propôs o conceito de deficiência que reconhece a experiência da opressão sofrida pelas pessoas com impedimentos. O novo conceito supera a ideia de impedimento como sinônimo de deficiência, reconhecendo na restrição de participação o fenômeno determinante para a identificação da desigualdade pela deficiência . A necessidade de proteção jurídica especial para as pessoas com deficiência impõe a submissão incondicional dos Estados aos preceitos editados no plano transnacional. A pauta comum humanitária, consolidada em prol dessa classe de pessoas com base na dignidade da pessoa humana e na solidariedade, exige o compartilhamento de responsabilidades de um novo tipo. No contexto dos novos desafios contemporâneos, além da reordenação do político, o jurídico também precisa ser revitalizado para que as normas, com pretensão de ultrapassar os caprichosos limites das fronteiras dos Estados, não sejam entendidas e concebidas apenas como conselho, sugestão ou argumento retórico inconsequente, mas sejam dotadas de efetividade exemplar. Percebe-se, pois, que esta categoria de pessoas, socialmente vulneráveis não pode ser deixada de fora dos debates sobre o acesso ao ensino superior nas universidades públicas. 4. Invisibilidade das pessoas com deficiência na política de cotas da Universidade Federal de Santa Catarina A Universidade Federal de Santa Catarina criou o seu programa de ações afirmativas através da resolução normativa n° 008/cun/2007 de 10/07/2007, na qual ficou estabelecido que serão destinadas vinte por cento do total de vagas aos candidatos de escola pública, dez por cento aos candidatos negros e cinco vagas aos indígenas (sendo que será criada uma nova vaga anualmente até 2013). Como não existe no programa de ações afirmativas da Universidade Federal de Santa Catarina a previsão de reserva de vagas para pessoas com deficiência, optou-se por realizar uma entrevista com um estudante com deficiência reprovado no vestibular da UFSC. O estudante C.R.S., de dezoito anos, é atualmente é bolsista ProUni em uma instituição de ensino superior privada. Segundo seu relato, o mesmo é deficiente visual e em seu cotidiano precisa enfrentar todo tipo de barreira e preconceito. Quando questionado a respeito do seu desempenho no vestibular da UFSC, relatou que teve muita dificuldade com a leitura da prova, mesmo ampliada e que depender do auxílio de um terceiro para transcrever as respostas o dificultou um pouco, mas que no geral teve um desempenho razoável, não tendo sido aprovado porque não havia vagas destinadas à pessoas com deficiência. Segundo o estudante C.R.S, a única oportunidade diferenciada que tive foi no Prouni, pois há preferência nas bolsas para portadores de necessidades especiais e alunos que cursaram o ensino médio em escola publica. Na UFSC minhas chances foram reduzidas, se houvesse uma quota para pessoas com deficiência eu certamente teria sido aprovado. O único tratamento diferenciado que eu tive foi para fazer a prova do vestibular. Quem tem alguma deficiência tem muito mais dificuldade e precisa fazer esforços muito superiores ao das pessoas normais para conseguir resultados medianos. Assim, fiquei para trás dos outros, os normais, e não consegui vaga porque as instituições não enxergam a dificuldades que temos para fazer tarefas simples do dia a dia, como pegar um ônibus para estudar. Não existe apoio para que pessoas como eu tenham maiores chances de uma formação profissional. Se existe cotas para negros, porque se entende que eles estão em desvantagem social, por que não há cotas para deficientes? Acho que a talvez a universidade ainda não esteja aberta para esta realidade, mas com os programas de inclusão de pessoas com deficiência nas escolas publicas fará com que logo logo estas pessoas estejam batendo nas portas da UFSC. E aí, como vai ser? Percebe-se assim, que as pessoas com deficiência ficaram alijadas do debate que envolveu o estabelecimento de reservas de vagas no âmbito da UFSC, não tendo sua legitimidade reconhecida por esta instituição de ensino. É imperiosa uma mudança de postura ética diante das diferenças, objetivando o reconhecimento destes sujeitos e sua inclusão como beneficiários das ações afirmativas. 5. Considerações Finais A mesma ideia de reserva de vagas para pessoas com deficiência já era prevista na Constituição Federal, em seu artigo 37, VIII, no que se refere à reserva de vagas nos concursos públicos. Neste caso, a permissão constitucional para adoção de ações afirmativas em relação aos portadores de deficiência é expressa e não viola o princípio da isonomia. Em primeiro lugar, porque a deficiência que essas pessoas possuem traduz-se em uma situação de nítida desvantagem em seu detrimento, fato este que deve ser devidamente levado em conta pelo Estado, no cumprimento do seu dever de implementar a igualdade material. Em segundo, porque os deficientes físicos se submetem aos concursos públicos, devendo necessariamente lograr aprovação. O mesmo deveria acontecer em relação ao concurso vestibular da UFSC. A reserva de vagas, portanto, representa uma dentre as diversas técnicas de implementação da igualdade material, consagração do princípio da isonomia, segundo o qual deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Se esse princípio é plenamente aceitável (inclusive na esfera jurisdicional) como mecanismo de combate à discriminação, da mesma forma ele deve ser aceito para embasar o acesso destas pessoas ao ensino superior nas universidades públicas. A recente Convenção da ONU sobre Direitos das Pessoas com Deficiências, internalizada na ordem jurídica brasileira com o status de norma constitucional, outorgou ampla proteção às pessoas com deficiência e exige a implementação de diversas políticas públicas afirmativas para a sua inclusão social. Considerando o compromisso assumido pelo Brasil com a proteção dos direitos humanos, concluiu-se que todas as normas constitucionais e infraconstitucionais que tratam da assistência social devem ser interpretadas em plena sintonia com o novo conceito de pessoa com deficiência conforme previsto nesta convenção e que estas pessoas não podem continuar invisíveis nas políticas para acesso ao ensino superior nas instituições públicas. REFERENCIAS DINIZ, Debora Diniz, BARBOSA, Lívia, SANTOS Wederson Rufino dos. Deficiência, Direitos Humanos e Justiça. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos. v. 06, n. 11. p. 93, dez. 2009. p. 73. GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 6-7. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 131:283-295, jul./set. 1996. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, Programa de Ações Afirmativas. Disponivel em http://www.acoes-afirmativas.ufsc.br/. Acesso em 10 de junho de 2012.