domingo, 28 de março de 2010

América profunda, de Rodolfo Kush

Pintura cusquenha

1. Uma breve síntese


América Profunda consiste em uma obra que mistura antropologia e filosofia fenomenológica. Seu enfoque trata, sobretudo, do encontro com o outro (o indígena pré-colombiano em confronto com o colonizador) em busca de um substrato comum na formação da identidade da população da América Latina.
Os estudos antropológicos de Kusch, nesta obra, centram-se no caráter religioso do indígena e do mestiço, inseridos em uma cultura que não separa o homem de sua referência cósmica, não separa cada homem dos outros homens, nem os homens dos deuses, em oposição a uma cultura ocidental urbana, desvinculada do solo, do sagrado.
Em termos metodológicos, Kusch elege a fenomenologia da cultura para a realização de seu estudo, o que significa em primeira instância uma aproximação empática com a linguagem, os ritos e as manifestações sociais dos povos andinos. Traça assim, as bases de uma dialética sul americana que se sustenta sobre o confronto de opostos.
O livro mostra-nos a forte presença da alma americana, através de uma investigação da visão de mundo andina, onde o autor desenvolve uma relação entre o ser (ou ser alguém) próprio da cultura ocidental e o estar, próprio dos indígenas, como raízes da mentalidade mestiça. Merece destaque, ainda, a relação entre o ambiente natural - no qual o granizo e a chuva, la ira de Dios, representam o temor – e o ambiente artificial – constituído no ambiente cidadão, onde reina la ira del hombre, representado pela ânsia de ser alguém.
Além disso, sob um olhar intuitivo e poético formula metáforas e produz uma forte simbologia em busca de um ser cultural americano. Para isso, utiliza-se de uma particularidade odorífera da América Latina, para referir-se a um povo que permanece a margem do progresso e investiga as particularidades da religião e mundo simbólico do homem pré-colombiano, que sujam a população americana.
Esta essência, que o autor define como fedor, em uma atitude de provocação aos que, de forma preconceituosa, vêem as raízes latino-americanas como algo ruim, opõe-se a uma pulcritude fictícia do homem urbano.

2. Algumas considerações sobre a obra

Em linhas gerais, América Profunda trata da invenção de um mundo onde o outro pode ser descartado se não se encaixar na concepção de progresso, de limpeza, de beleza, de ordem e de pureza. E por estender tais conceitos dos objetos aos sujeitos, às etnias, às sexualidades, inúmeros episódios de discriminação, massacres e verdadeiros genocídios foram forjados pelas sociedades ao longo dos tempos.
Mary Douglas, na obra Pureza e Perigo afirma que a sujeira é essencialmente desordem, portanto, é ofensiva a ordem, e existe aos olhos de quem a vê. Eliminá-la não é um esforço negativo, mas positivo, uma vez que reorganizamos o ambiente ao fazê-lo. O problema é que do ambiente, muitas vezes, passamos a reorganizar a sociedade, estendendo os conceitos de puro/impuro a pessoas e grupos sociais.
A desordem estraga o padrão. Mas, assim como estraga o padrão, ela fornece materiais para esse mesmo padrão, fornece materiais para a ordem. Cada cultura impõe sua própria noção de sujeira e de contaminação, e assim estabelece sua noção de ordem, a partir de então, a ‘sujeira’ deve ser eliminada. Neste sentido, é impossível não lembrarmos do extermínio perpetrado pelos espanhóis contra os nativos americanos ou do extermínio de judeus realizado pelos nazistas durante a segunda guerra mundial.
Pureza, sujeira, higiene, estão então associados à idéia que temos de ordem. E é esta ordem que fornece estabilidade em uma sociedade pensada em termos de projeto e progresso. No entanto, quando trancafiamos os loucos em manicômios, quando incineramos milhares de pessoas, quando exterminamos o diferente, quando consideramos o outro como sujeira e tratamos de organizar o ambiente, eliminando a presença de pessoas ou grupos indesejados, estamos assistindo uma tentativa de homogeneização e purificação da sociedade, que incluiu, na radicalização desses preceitos, a eliminação genocida do diferente, que não se encaixa nesse ordenamento social.
Assim, podemos compreender a metáfora de Kusch em América Profunda: a essência cultural do mestiço e do nativo sul americano é para o colonizador sujeira, fedor e deve ser eliminada para a constituição de um povo homogêneo e culturalmente a altura do colonizador europeu. Superar esta premissa é o grande desafio para o qual o autor nos convida.