sexta-feira, 1 de maio de 2009

A SÁTIRA DA VIDA FELIZ: estoicismo e epicurismo na cultura latina

Sêneca traz em “A Vida Feliz” uma expressiva reflexão sobre as doutrinas filosóficas mais importantes da Roma Antiga. Contrapõe em sua obra o estoicismo de Zenon e o Epicurismo, doutrina fundada por Epicuro. Grosso modo, pode-se dizer que a proposta da primeira era chegar-se à felicidade através da obtenção, por meio da virtude, de um perfeito equilíbrio interior capaz de fazer o homem aceitar com a mesma serenidade a dor e o prazer, a ventura e o infortúnio e a da segunda, que a felicidade humana estava na busca do prazer.
Na apresentação que faz da obra de Sêneca, Diderot afirma que o estoicismo não é senão um tratado sobre a liberdade entendida na plenitude de sua significação[1]. Segundo os estóicos, o homem feliz é aquele que vive segundo a natureza, para quem não há bem maior do que a virtude nem mal pior que o vício e, o mais importante: o homem não deve tornar-se um escravo do prazer.
De todos os prazeres o mais doce é aquele que nasce da virtude[2]. A virtude defendida por Epicuro é a do homem do mundo, sujeito a erros e acertos, falho, por sua própria natureza. No entanto, percebe-se que, na prática, sua doutrina foi desvirtuada pela vida amoral do cidadão romano. Para evitar a infâmia que mereciam por seus costumes depravados, os efeminados, pervertidos e os corruptos se disseram discípulos do prazer; e eram de fato; mas tratava-se de seus próprios prazeres, não dos de Epicuro[3].
A amoralidade dos costumes romanos, a busca incansável pelo prazer, de maneira hedonista, foram perfeitamente relatados por Petrônio, na obra Satyricon. Narrando as aventuras de três jovens – Encólpio, Ascilto e Gitão – o autor traça um panorama da vida e da cultura romana, descrevendo as orgias e os grandes banquetes, tão comuns na Roma Antiga.
A obra de Sêneca é destinada a seu irmão Gallione, e assemelha-se a um pequeno manual sobre a busca da felicidade que inicia afirmando que esta é meta de todos, mas que o caminho é árduo. Entre os males que afastam o homem do caminho da felicidade, Sêneca destaca a multidão, a sociedade. Nada é pior do que escutar a fala da sociedade, -considerando justo o que a maioria aprova, e imitar o modelo do comportamento da massa, vivendo não segundo a razão, mas pelo conformismo. Para o filósofo, a maioria induz ao erro e propaga-o, pois as pessoas que preferem aceitar a opinião alheia a pensar pelas próprias idéias limitam-se a crer antes de avaliar, forma pela qual o erro é transmitido de mão em mão.
Os estóicos seguem a natureza, obedecendo a seus exemplos e leis. A vida feliz é, pois, aquela adequada à natureza e alcançável em primeiro lugar pelo espírito sadio e perpétuo possuidor desta saúde; em segundo lugar pelo espírito forte, vigoroso e além de tudo paciente e apto a resistir a todas as provações, solícito aos cuidados do corpo, dedicado a procurar outras benesses que alegram a vida, sem inebrios, gozando os dons da fortuna sem escravizar-se a ela[4].
Para Sêneca, o homem feliz é aquele dotado de reto juízo, que se contenta com seu estado e condição, qualquer que seja, e aprecia o que é de sua posse. Enfim, é feliz quem confia à razão a gerência de toda a sua vida. Aqueles que colocam a felicidade nos prazeres, logo se dão conta de seu erro. O prazer é baixo e servil, débil e fugaz, sua sede e morada são os prostíbulos e tabernas. Petrônio deixa claro o quanto era aceitável para os romanos confundir felicidade e prazer, e pode ser ilustrada com a seguinte passagem de sua obra:
Depois de havê-lo procurado em todos os quarteirões da cidade, voltei para casa e consolei-me nos braços de Gitão. Enlacei-o com os mais calorosos abraços. Minha felicidade, igual a meus desejos, era realmente digna de inveja.[5]
Para Sêneca, a vida deve ser orientada pela virtude. Nenhum prazer pode contrapor-se á previdência, grandeza, saúde moral, liberdade, harmonia, beleza...Por que falar-me em prazer? Eu busco o bem do homem, não o do estômago, como é provável ocorrer nos animais e nas bestas incapazes.
A esta crítica de Sêneca, convém lembrarmo-nos da descrição do banquete oferecido por Trimálquio, que ocupa cerca de cinqüenta capítulos do Satyricon, na qual Petrônio satiriza os costumes da época.
Entrementes, trouxeram o primeiro prato, que não podia ser mais maravilhoso. Todos já se achavam à mesa, com exceção de Trimálquio, a quem – contra os costumes – não se tinha reservado o lugar de honra. [...] Havia bandejas em forma de pontes, contendo coelhos temperados com mel e papoula. Um pouco além, salsichas bem tostadas, numa grelha de prata. E sob a grelha, ameixas sírias e polpas de romã[6].
Petrônio prossegue descrevendo todos os exageros e extravagâncias do banquete, evidenciados na cena em que o cozinheiro abre o ventre de um enorme porco, do qual jorram salsichas e morcelas em imensa quantidade.
O homem envolto na lascívia, imoral e ébrio, sabe que vive com o prazer, mas crê viver com a virtude. [...] Esses não prezam o prazer de Epicuro posto que este é sóbrio e austero, mas enlevam-se pelo nome, buscando um pretexto que acoberta suas paixões. [...] Epicuro apregoa que o prazer obedeça à natureza, mas é muito insuficiente para a luxúria o que basta para a natureza[7].
Logo no início do Satyricon, Petrônio faz uma interessante descrição do prostíbulo ao qual Encólpio é levado por uma velha senhora e onde encontra Ascilto. Demonstra com presteza toda a luxúria a qual Sêneca se refere e salienta a questão da servidão ao prazer.
[...] A tentação nos venceu e, seguindo nossos guias, atravessamos várias salas, teatros lúbricos dos jogos da volúpia. A julgar pelo furor dos combatentes, dir-se-ia que estavam embriagados de satírio. Vendo nosso aspecto, eles repetiam as posturas lascivas, para nos levar a imitá-los. De repente, um deles levantou as vestes até a cintura e, atirando-se sobre Ascilto, lançou-o sobre um leito próximo, tentando violentá-lo.
É importante ressaltar-se ainda, o papel da riqueza para a busca da felicidade. Para os estóicos, a riqueza pouco significa, pois o importante é viver segundo a natureza. Sêneca afirma que a riqueza é serva na casa do sábio e senhora na casa do néscio[8]. Assim, aqueles que vivem em busca do prazer, além de gananciosos, fazem da riqueza um meio para atingir seu objetivo egoísta de prazer desmedido. A riqueza torna-se tudo e dela, fazem-se escravos.
Na sua ânsia de riqueza e prazer, os jovens personagens de Petrônio envolvem-se nas mais complicadas situações, como quando furtam pertences de Licas: Apenas Gitão percebeu as minhas manobras; procurou então, livrar-se dos guardas e encontrou-se logo depois comigo. Quando ele chegou, mostrei-lhe o que tinha roubado e resolvemos imediatamente ir ao encontro de Ascilto[9].
Enfim, percebe-se que a vida cultural da Roma Antiga está profundamente ligada a condutas hedonistas que pouco se assemelham ao Epicurismo. A doutrina de Epicuro além de desvirtuada, transforma-se num discurso que justifica as práticas adotadas pela sociedade, como a libidinagem, as orgias e os grandes banquetes. Práticas incentivadas e legitimadas pelo poder do Império e que, em última análise, não deixavam de ser uma válvula de escape para as tensões sociais, assim como a política do pão e do circo.



Notas:

[1] Sêneca (1991, p.12)
[2] Op. Cit., p. 14.
[3] Op. Cit., p. 15.
[4] Sêneca, Op. Cit., p. 27.
[5] Petrônio (1981, p. 14).
[6] Petrônio, Op. Cit, p.44
[7] Sêneca, Op. Cit., p. 39-40.
[8] Idem, p. 62.
[9] Petrônio, Op. Cit. p. 18.

Referências:

PETRÔNIO. Satyricon. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
SÊNECA. A Vida Feliz. Campinas: Pontes, 1991.

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