sábado, 23 de maio de 2009

Viagem ao mundo dos mortos de Virgílio

Chegando a Cumas, Enéias desembarca na praia Hespéria com sua frota. É lá que fica o retiro afastado da Sibila temível, antro monstruoso onde o profeta de Delos lhe inspira a alma e lhe descobre o porvir. Enéias e seus companheiros já penetravam no bosque, quando Acates, que havia sido mandado na frente, apresenta-se juntamente com a sacerdotisa de Febo e de Trívia, Deífobe, que sugere que sejam oferecidos os sacrifícios de costume.
O templo no qual encontram-se as respostas da Sibila assemelha-se a uma caverna, onde cem entradas largas conduzem a cem portas, das quais saem outras tantas vozes, respostas da sibila. À entrada da porta a sacerdotisa, já possuída pelo sagrado furor, diz a Enéias que é tarde demais para que ele ofereça seus votos e preces. No entanto, as portas se abrem para o troiano.
Ansioso para saber que destino os deuses reservavam-lhe, Enéias oferece-se para construir um templo de mármore dedicado a Febo e a guardar nele seus oráculos. Pede ainda a sacerdotisa que ela o deixe ir ao reino de Hades, onde deseja encontrar seu pai e com ele conversar:
Não te peço senão uma coisa: visto que é aqui, diz-se, a porta do rei dos Infernos e o tenebroso pântano para onde reflui o Aqueronte, que me seja lícito ir ver meu pai querido e com ele praticar; ensina-me o caminho e abre-me as portas sagradas.

A sacerdotisa avisa-lhe que as portas do sombrio Dite estão abertas noite e dia, mas poucos mortais puderam retornar.
Florestas ocupam todo o espaço intermediário e o Cocito no seu curso, o rodeia com negro circuito. Se tens tão grande desejo, tão grande avidez de atravessar duas vezes o negro Tártaro, e se te apraz tentar tão louca empresa, ouve primeiramente as coisas que devem ser feitas.
A sacerdotisa avisa a Enéias que ele deve encontrar escondido no bosque uma árvore que produz um ramo de ouro, sem o qual não lhe será permitido penetrar nas profundezas da terra. Avisa-o ainda, que um dos seus companheiros de frota jaz sem sepultura e que ele deve fecha-lo no sepulcro e oferecer os sacrifícios e oferendas necessários aos deuses.
Ao retornar a praia, Enéias encontra seu companheiro Miseno, morto com morte indigna e apressa-se a seguir as ordens da Sibila. Vai à antiga floresta e suplica: Oh! Se o ramo de ouro a nós se mostrasse sobre uma árvore, nesta tão grande floresta! Pois tudo o que disse a profetisa não era, ai de mim! Verdadeiro senão pra ti, ó Miseno!
Mal proferira estas palavras quando vê descer do céu duas pombas, que o herói logo reconhece como pertencentes a sua mãe. Pede-lhes que mostrem o caminho até o ramo sagrado e elas obedecem, voando ao alcance dos olhos do herói, até pousarem sobre uma árvore, onde o brilho do ouro, filtrando-se através dos ramos ofusca os olhos.
Enéias destaca o ramo e leva-o à morada da Sibila e passa a executar suas prescrições. Havia uma caverna profunda, monstruosamente talhada na rocha, com grande abertura, protegida por um negro lago e pelas trevas dos bosques. Lá realizam as preces e oferendas necessárias. Ao amanhecer, a sacerdotisa diz a Enéias que é o momento em que precisará dispor de toda a sua coragem. Penetram então no antro.
No próprio vestíbulo, à entrada das gargantas do Orco, o Luto e os Remorsos vingadores puseram seus leitos; lá habitam as pálidas Doenças e a triste Velhice, e o Temor, e a Fome, má conselheira, e a espantosa Pobreza, formas terríveis de se ver, e a Morte e o Sofrimento; depois o Sono, irmão da Morte, e as Alegrias perversas do espírito, e, no vestíbulo fronteiro, a Guerra mortífera, e os férreos tálamos das Eumênides, e a Discórdia insensata, com sua cabeleira de víboras, atada com fitas sangrentas.
No meio, um olmeiro opaco, enorme, estende seus ramos e seus galhos seculares, morada que freqüentam os Sonhos vãos, fixados todos sob suas folhas. Além disso, mil fantasmas monstruosos de animais selvagens e variados aí se encontram, como os Centauros, Górgonas, Harpias e Cilas biformes.
Aí inicia o caminho para o Aqueronte[1] do Tártaro[2]: é um golfo que borbulha, vasto abismo de lodo que referve e vomita todo seu limo no Cocito. Um barqueiro horrendo guarda essas águas e rios, Caronte, de terrível sujidade, cuja barba abundante, branca e mal tratada, lhe cai do queixo; seus olhos cheios de chamas são fixos; pende-lhe das espáduas o sórdido manto amarrado com um nó. Por meio de uma vara impele a embarcação, dirige-a com a vela e transporta os corpos na barca cor de ferrugem; já é idoso, mas sua velhice é sólida e vigorosa como a de um deus.
Uma multidão ali espalhada corria para a margem, pedindo-lhe para atravessar e atingir a outra margem. Enéias espantado com o tumulto pergunta à Sibila o que pedem tão desesperadamente aquelas almas. Ela responde-lhe que aqueles são os que ficaram sem sepultura e os que são conduzidos por Caronte são os que foram sepultados.
Entre os insepultos, Enéias vê Leucáspide e o chefe da armada lícia, Orontes, que haviam partido de Tróia com ele e sucumbiram aos mares tempestuosos. Logo, aproxima-se o piloto Palinuro, que na travessia do mar da Líbia, caíra da popa enquanto observava as constelações, e havia desaparecido no seio das ondas.
Ao ver a Sibila e Enéias, Carionte, contrariado os repreende. A sacerdotisa conta-lhe que a única intenção de Enéias é encontrar seu pai, entre as sombras profundas do Érebo[3], mostrando-lhe também o ramo sagrado. O barqueiro, admirado, aproxima a barca da praia, afasta as outras almas e transporta, sãos e salvos, até a outra margem, a sacerdotisa e o guerreiro.
Lá estão os reinos que o terrível Cérbero abala com o ladrar da sua tríplice goela; o monstro está deitado no antro, em frente da margem. A sacerdotisa, vendo já seu pescoço se eriçar de serpentes, lança-lhe um bolo soporífero composto de mel e de grãos preparados; o animal, com fome devoradora, abre suas três goelas e engole o que lhe lançam, estende-se no solo e com seus costados imensos enche todo o antro. Enéias apressa-se em transpor a entrada, enquanto o guardião está sepulto no sono, e se afasta rapidamente da margem de onda irremeável.

Ouvem vozes e percebem almas infantis. Perto delas, os inocentes que forma condenados a morte por erro. Aí, Minos convoca a Assembléia dos Silenciosos, que inquire da vida e dos crimes de cada um. Depois, ao lado, estão os que tiraram a própria vida. O destino a isso se opõe, e o pântano odioso de onda triste os prende e o Estige, dividido em nove braços os aprisiona. Não longe dali se estendem por todos os lados os campos das Lágrimas. Lá estão os que um duro amor devorou. Nestes campos, Enéias encontra a fenícia Dido pela última vez.
Dali continua o caminho que lhe foi determinado. Atinge os campos mais recuados, que, separados, freqüentam os varões ilustres na guerra. Lá encontrou Tideu, Partenopeu, Adrasto, entre outros guerreiros.
Continuando sua jornada, chegam ao local onde o caminho se bifurca: o caminho à direita é o que vai dar nas muralhas do grande Dite; é o caminho dos Elíseos, é o nosso; mas o caminho à esquerda conduz ao Tártaro ímpio, onde os maus são punidos. Enéias vira-se para a esquerda e vê ao pé de um rochedo, largas muralhas circundadas por tríplice muro. Um rio rápido, o Flegentonte do Tártaro, as rodeia com chamas torrenciais e rola retumbantes rochedos. Em frente uma enorme porta e colunas de sólido diamante que nenhuma força é capaz de derrubar. Uma torre de ferro se ergue nos ares, e Tísifone aí vigia, com a veste ensangüentada guarda o vestíbulo dia e noite sem dormir. Dali se ouvem gemidos, terríveis chicotadas, o ruído estridente do ferro e o arrastar das cadeias.
Prosseguem pelo caminho à direita e chegam às portas com a abóbada fronteira, onde fixam o ramo de ouro. Passam então a caminhar pelas ridentes paragens, frescos vergéis de árvores deliciosas – a habitação dos bem-aventurados. Lá encontra os grandes heróis e guerreiros fundadores de Tróia e, finalmente, encontra seu pai, que lhe apresenta toda a estirpe de descendentes que trarão a grandeza e a glória para o Império Romano.

[1] Segundo a mitologia Aqueronte é um dos rios do Inferno.
[2] Em latim, Tartaru, “o lugar mais profundo do Inferno”.
[3] O Érebo corresponde na mitologia a região situada abaixo da Terra e acima do Inferno
Quadro: A barca de Dante - Delacroix, Museu do Louvre - Paris

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